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É isto a vida ?

Ao quase sonâmbulo que percorria a calçada úmida da Rua do Acampamento ao anoitecer - quase um fantasma para o medo das famílias - eu perguntei:

É isto a vida?

No silêncio do mictório público da Praça Saldanha Marinho, naquela noite quente de dezembro, eu perguntei ao homem fantasiado de Papai Noel que chorava convulsivamente:

É isto a vida?

Eu vi a foto com a placa indicando o local onde havia caído a bomba e à avó do neto anômalo de Hiroshima eu perguntei:

É isto a vida?

Em tempo de delação e tramóia, quando em reuniões secretas se enchem malas de dinheiro podre e se traem amigos antigos eu fiquei a pensar:

É isto a vida ?

Quando o orgasmo involuntário macula o lençol do adolescente inquieto e a pressurosa e moralista mãe lhe ameaça com o pântano do inferno do alto da treva de sua ignorância, eu indaguei:

É isto a vida?

Quando o passarinho exausto, depois de um dia gasto à procura de alimento para os filhotes pousou no galho da pitangueira e recebeu um tiro do humanoide boçal em férias, ficando com as vísceras à mostra, excêntrica mistura de chumbo e sangue, eu perguntei:

É isto a vida?

Quando o mesmo pai que se desvaneceu na torturada carne da amante ficou pálido diante da gravidez da filha caçula e sua mão de falsa e ultrapassada moral gritou um tapa na face de porcelana da futura mamãe, eu perguntei:

É isto a vida?

Quando a censura - como soturno réquiem - quer se abater contra a exaustão da mente a criar, eu morro carbonizado de tédio, tensão, vômito e náusea porque eu sei, bem dentro do meu miocárdio de ancião eu sei, que todo cérebro humano é uma vasta terra de horizonte livre para plantar o que quiser. Por isso, aprendi com os anos a ter misericórdia com o velho atleta de músculos flácidos. O irônico colega perturbado. Ao vulto do inimigo escondido atrás da cortina. Aos inimigos navegando para a morte. Ao que uiva de dor nas madrugadas nos sanatórios.

Mas diante de uma colmeia, quando as abelhas - pacificamente - organizam tudo e ainda produzem mel, imediatamente lembrei de uma frase de Santo Agostinho: "A paz está na ordem". E me certifiquei:

É isto a vida!

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